O gigante adormecido

China
Uma das maiores figuras da história da humanidade viveu parte da sua vida como um glorioso imperador. Napoleão Bonaparte tentou fazer de França a maior potência mundial na primeira metade do século XIX e, até certa altura, conseguiu. Conseguiu até o império britânico o derrubar e o exilar numa das ilhas mais remotas do mundo, a ilha de Santa Helena, que se encontra perdida no meio do Atlântico Sul. Durante o seu exílio, esta figura histórica nunca deixou de exercer a sua influência, principalmente como conselheiro. O seu principal companheiro de diálogo era o lorde Amherst e numa das tertúlias este confidenciou que o império não tinha conseguido estabelecer relações com o império chinês. Napoleão na sua sabedoria referiu: “Deixem a China dormir, porque, quando ela acordar, o mundo inteiro tremerá!”.
Para os mais desatentos, a frase pode não fazer nenhum sentido, porém, eu considero Napoleão um visionário. A influência do mundo chinês é enorme no Ocidente. Chega-nos há vários anos através da tecnologia, vestuário ou economia. Recentemente, o desporto que faz bater o nosso coração, o nosso futebol, começa a tremelicar, pois o gigante de olhos em bico acordou.
O plano é claro: revolucionar o futebol chinês com base em três premissas. Primeiro, qualificar-se para a fase final de um Mundial. Segundo, organizar um Mundial e, por fim, vencê-lo. Para alcançar tais feitos, o presidente chinês Xi Jinping, fervoroso adepto de futebol, anunciou uma série de medidas, entre as quais a obrigatoriedade da prática do futebol nas escolas. Milhares de milhões de crianças serão obrigadas a praticar futebol para o bem da nação, uma medida que funciona como uma lógica matemática um pouco duvidosa. Não é linear que a china com 1300 milhões de habitantes seja capaz de produzir 100 vezes mais Ronaldos e Eusébios que Portugal com 10 milhões. Os responsaveis chineses têm que se relembrar que, apesar da sua irrepreensível ética de trabalho, preparar um ginasta não é exactamente igual a criar um futebolista.
Outros passos também têm sido dados neste sentido. Como é óbvio, estas medidas totalitárias não serão suficientes. É necessário criar um cultura de futebol e introduzir no país pessoas capazes e com conhecimento para elevadar a fraquíssima qualidade de base do futebolista chinês. O processo começou com a contratação de estrelas de renome mundial na fase final da carreira, tanto no banco de suplentes como no relvado. Marcelo Lippi, Fabio Cannavaro, Didier Drogba e Sven-Gorän Eriksson representam apenas alguns dos nomes que trouxeram noteriedade (a Ford deixou o patrocínio da Liga dos Campeões para patrocinar a Superliga Chinesa) para a China e foram os primeiros a incutir neste meio os processos e métodos do futebol europeu. O crescimento, apesar de sustentado, foi lento. Contudo, em 2013 começou a criar os seus primeiros frutos. O Guangzhou Evergrande conquistou o primeiro titulo da Liga dos Campeões Asiática para o futebol chinês desde 1990 e conseguiu a qualificação para o Campeonato do Mundo de Clubes. A façanha foi repetida em 2015, com o nosso bem conhecido Luíz Felipe Scolari aos comandos da equipa.
No início, os nomes sonantes em processo de decaimento de carreira pareciam ser suficiente, no entanto, os responsáveis rapidamente se aperceberam que não seria bem assim. Para além do nome e do prestígio, seria necessário também qualidade. Para isso viraram o investimento para outro tipo de activos. O jogador brasileiro ou do campeonato brasileiro, de qualidade e sedento de dinheiro. Nomes como Elkeson, Robinho, Goulart e Dario Conca trocaram uma carreira na Europa por uma conta bancária na China. Para além de notoriedade levaram também qualidade ao campeonato chinês. Engane-se aquele que pensa que este processo está prestes a acabar, pelo contrário, o seu fim parece bem distante.
Ainda neste mercado de inverno foram confirmados mais alguns nomes, desta vez de campeonatos europeus. Ramires, Gervinho e Freddy Guarin estão a caminho do campeonato chinês a troco de avultadíssimos contratos e valores de transferência, sendo que ainda ontem foi confirmado mais um negócio milionário. Jackson Martinez trocou o Atlético de Madrid pelo Guangzhou Evergrande a troco da módica quantia de 45 milhões de euros. O colombiano vai ganhar também uma pequena fortuna, cerca de 12,5 milhões de euros por cada ano de contrato, ficando ainda com uma cláusula de 50 milhões de euros.
O sucesso destas estratégias não se mede só ao nivel dos clubes – a selecção chinesa começa igualmente a crescer. Depois do desaire do Mundial de 2002, em que foi eliminada sem qualquer golo marcado e só com derrotas, a Federação Chinesa decidiu renovar-se. A par do investimento nos clubes, também foi realizada uma reestruturação de algumas das regras para controlar esse investimento e não negligenciar o problema essencial, a falta de qualidade dos jogadores chineses. Os clubes que actuam na Super Liga podem contratar quatros estrangeiros fora do espaço asiático e um dentro dos espaço asiático, sendo que apenas quatro podem jogar em simultâneo. A esta política, das mais acertadas no turbilhão que é actualmente o futebol chinês, já é possível atribuir resultados. No último campeonato asiático, a equipa chinesa já foi capaz de, pela primeira vez, passar a fase de grupos da competição e só com vitórias. Viria a ser derrota pela vencedora e anfitriã, a selecção da Austrália.
Utópico é a primeira palavra que me recordo ao observar fora do contexto todos estes acontecimentos, porém, tendo em conta a realidade dos factos, apesar de distante, o sonho não parece assim tão descabido. O mercado chinês foi, nesta janela de transferências, o segundo que mais dinheiro movimentou. 335 milhões de euros, ficando apenas atrás do mercado inglês. Afinal, basta a China começar a acordar que no primeiro bocejo, após uma longa noite de sono, abana e faz tremer os actuais donos do futebol mundial. Claro que qualquer dinheiro do mundo não vai comprar a alegria que é um adepto ver um Barça-Real Madrid. Não vai comprar a felicidade e paixão com que se joga o futebol inglês e muito menos pôr milhões de corações a esquecer o que lhes foi incutido por toda a herança do futebol mundial. O dinheiro pode comprar o crescimento, e o futebol chinês precisa disso. Mas, para rivalizar com o que é futebol no resto do mundo, precisa de criar paixão!